A História de Samuel e Helen - parte 1

Na entrada da cidade de Boêria se acha a frase “Pela fé sereis salvos”. A cidade em que só vivem pessoas brancas tem cerca de 5.000 habitantes. Pacata, cristã, limpa e de temperatura baixa. Os moradores gozam a calma da cidade advinda de sua cultura religiosa. Carlos Boque, então prefeito, foi o fundador da cidade unido ao pastor João Carlos, o líder religioso maior.


Carlos Boque é um empresário que se tornou bem sucedido na área de extração de minerais e ouro no passado. Diz ter sentido que Deus o chamou para dar aos seus irmãos da fé a mesma oportunidade de ouvir o divino como ele próprio ouviu.

O pastor João Carlos seguiu os passos da família. Ainda jovem se sentiu inspirado a seguir de modo mais fiel a religião e devotou toda a vida a causa cristã. Tornou-se o maior líder em sua cidade após anos de árdua devoção. Pouco antes de Carlos Boque contatá-lo com a proposta de reunirem os fieis para fundar uma cidade santa, diz que teve um sonho. Nesse sonho ele via Deus descer do céu e falar que ele seria testado na fé. Então viu seu sonho diante de si no momento da decisão de colonizar uma terra inabitada.
Então se os dois se uniram e partiram com muitos seguidores da cidade em que moravam para habitar uma terra inabitada.

O trabalho de colonização de Boêria foi árduo. Todos trabalharam com afinco para construírem as casas e os estabelecimentos comerciais, mas principalmente se empenharam para construir a igreja.

Em seus primeiros anos foram atacados por seitas contrárias, o que os obrigaram a pegar em armas e protegerem sua cidade. O pequeno exército cristão arrasou seus adversários. Esse exército reflete exatamente quem são os cidadãos de Boêria. Rigorosamente disciplinados, sérios, sem excessos, severos quanto às questões morais, com aparência sempre limpa e simples, além de serem muito devotos a sua religião. Todos os dias cedo eles fazem uma leitura da Bíblia e acreditam em seu motivo religioso de defender o povo escolhido de Deus.

A religião que seguem defende a política de segregação racial baseada em princípios cristãos. Os religiosos acreditam que essa é uma prática justa e razoável, pois o intuito deles é a manutenção, proteção da população e cultura de seus afiliados da raça branca considerada pura e a proteção dos grupos raciais indígenas, ou afros menos civilizados separados em suas próprias áreas como meio de preservação das espécies e culturas, pois uma mistura racial significaria o fim das duas espécies.

Assim também são as famílias de Boêria. A rotina das famílias envolve muito trabalho, estudo religioso e secular, constante reuniões entre familiares e a adoração religiosa. Geralmente são bem sucedidos. Eles aprendem a cultivar a terra e plantar toda espécie de grãos e frutas.

Em uma casa da cidade, na manhã de domingo, uma família como qualquer outra está se preparando para ir à igreja.

- Helen, você já está pronta, querida? – pergunta a mãe para a filha que é sempre a primeira a se arrumar.
- Sim, mamãe. Eu já estou pronta. – responde a pequena Helen.
- Vamos sair, vamos... – diz o pai animando a família.

Como a cidade é pequena, muitos vão a pé para a única igreja da cidade. É uma igreja enorme, todos da cidade se congregam nela.

Ao chegar, vê-se a majestosa construção, feita para reinar entre todas as construções. É a única construção da cidade que não tem a simplicidade como característica. Ela passa um ar de sobriedade, é toda cinza e com cores apenas nos vitrais. A porta é larga e espaçosa com o dizer acima dela “A Casa de Deus”. Ao redor da igreja há esculturas de doze homens com coroas na cabeça. Mais acima, ainda na parte exterior do prédio, muitos ornamentos e alguns animais. Os vitrais retratam os momentos da vida do homem passando do seu nascimento, batismo, crescimento físico e espiritual, trabalho, casamento, prosperidade e morte. Há ainda, acima disso tudo, a figura de Jesus Cristo como sendo um rei e no alto do prédio que vai afinando como uma torre há uma cruz. Há mais duas torres menores ao lado do edifício. Há uma curiosidade, pois vista de longe, ela foi projetada para dar a impressão de que o edifício está flutuando no ar alguns poucos metros. Por dentro é bem espaçosa e luxuosa. Com muitos bancos. Um magnífico altar representa a santa-ceia com muitos ornamentos. Abaixo do altar fica um pequeno pilar com uma bíblia em cima. E é sob essa majestosa visão que os moradores de Boêria estão assistindo o culto no domingo.

- Deus nos escolheu para não irmos para o inferno. Ele nos colocou aqui nessa cidade para nos proteger.  – então perguntou o pastor João Carlos – A pergunta é: "Estamos agindo como os escolhidos do Senhor?" e mais "Estamos tendo sucesso na vida como o Senhor espera que tenhamos?". Irmãos, a pobreza não vem de Deus, mas sim de Satanás. O pai de todas as mentiras. Nós somos a luz do mundo, restauramos a perdida comunhão com o Pai.

A reunião se estende por várias horas. Todos ouvem atentamente a prédica do pastor João Carlos que vem há muito tempo liderando o povo em suas buscas espirituais.
Voltando para casa a família da pequena Helen conversam entre si:

- Pai, como é o inferno? – pergunta a inocente garotinha.
- Filhinha minha, o inferno é um lugar feio e fedido, aonde ninguém quer ir. – responde o pai.
- E por que as pessoas vão para o inferno? – pergunta novamente Helen.
- Só as pessoas más vão para o inferno, Helen – diz a mãe – lá é um lugar ruim visto que só tem pessoas ruins. Para você não ir para o inferno tem que ler a Bíblia Sagrada todos os dias, sempre orar para o papai do céu e nunca fazer maldade a ninguém. Está vendo lá o seu amiguinho Jonathan, ele está sendo malcriado com a mãe dele, se ele continuar assim, com certeza vai para o inferno.

Chegando em casa a mãe prepara um banquete para a família, os avós de Helen logo chegam, também seus tios e todos se reúnem à mesa.

- Passe-me o frango, por favor. – diz o avô.
- Está aqui. – diz um dos tios de Helen pegando o frango.
- A reunião hoje foi maravilhosa, você não acha pai? – diz o pai para o avô.
- Eu não sei meu filho. – responde meio envergonhado.
- É porque ele dormiu a reunião inteira – redargui a avó.
- Que feio, pai. – diz o pai de Helen.
- É vovô, continuando assim você vai para o inferno. – diz Helen.
- Menina, não fale assim do seu avô. – repreende a mãe.
- Mas, mamãe. A senhora disse que...
- Para se falar de alguém, você primeiro tem que olhar para si, filha. – diz a mãe.
- Como eu olho para mim? – intrigada, pergunta Helen.
- Filha – argumenta o pai – você se lembra de quando o pastor João disse hoje "Nós estamos agindo como os escolhidos do Senhor?" e "Temos sucesso na vida como o Senhor espera que nós tenhamos?" É assim que se olha para si. Vendo se você está fazendo o que Deus quer e se você está tendo prosperidade aqui na Terra.
- Eu vou para o inferno, papai? – pergunta Helen.
- Isso vai depender de você, minha filha. Vai depender de você...
Na escola as crianças também aprendem sobre religião. As crianças aprendem também a lidar com o dinheiro, além do ensino secular geral. Essa é a última semana antes das férias de final de ano. A professora está fazendo uma atividade para que as crianças contem o que elas farão em suas férias.
- Ei! Jonathan. – sussurra Helen.
- Fala menina.
- Eu sei para onde você vai nessas férias.
- Você sabe? Para onde eu vou?
- Você vai para o inferno. – diz a pequena Helen.
- Cala a boca – grita Jonathan – eu não vou para o inferno!
- O que é que está acontecendo? – inquire ao jovenzinho a professora.
- A Helen disse que eu vou para o inferno. – diz Jonathan começando a chorar.
- Helen, você disse mesmo isso?
- É que o pastor João que falou. – gagueja a menina.
- Helen! – indigna-se a professora – não fale assim.
Chegou o final de semana, a família de Helen está se preparando para a viagem de férias.
- Mamãe, quando chegarmos à casa da vovó, eu posso brincar na rua com as outras crianças? – pergunta Helen.
- Não filhinha, é melhor você não brincar com as outras crianças.
- Por que não?
- É porque ficamos muito tempo sem ver a vovó e quando vamos para lá ela se sente muito feliz. Não é bom que você deixe sua avó de lado para brincar com as crianças. Você não acha que ela ficaria triste?
- Não. Ela até me falou uma vez para ir lá fora brincar com as crianças, mas eu disse que não podia porque o papai não deixava.
- Você fez bem minha filha.
- Mas porque eu não posso brincar com as outras crianças?
- Um dia você aprenderá...

A família da mãe de Helen não são membros da mesma religião. Apesar disso periodicamente a família os visita para momentos familiares agradáveis.

Naquele final de semana eles arrumam as malas e partem para a viagem. Que é longa e passa por várias regiões diferentes. Eles passam a viagem cantando, conversando e dando risadas. Depois de um bom tempo de viagem Helen impaciente pergunta:

- Já estamos chegando?
- Falta mais um pouco, Helen. – diz o pai.

Passando por uma região muito quente Helen avista uma colônia de casas velhas, feitas de barro e folhas grandes. Parece um lugar abandonado, solitário e triste. Helen fitava seus olhos inocentes, sem entender aquele lugar, apenas olhando como se não houvesse sentido tudo aquilo, até avistar um menino.

O menino é negro e tem olhos mui profundos. Seu nariz é grande, tal como sua boca. As sobrancelhas grossas e firmes. Naquele momento algo aconteceu dentro daqueles dois. Algo que as palavras ainda não explicam. Como se tivessem vivido um momento marcante independente do tempo e espaço. Alguns creem que as crianças nascem com o dom chamado Olhus. Que é o dom que o ser humano tem de olhar por meio das pessoas, do tempo, do espaço e sentimentos.
Passando naquele lugar Helen pergunta:

- Papai, o que mora ali? – e aponta o dedo para as casas.
- São pessoas, filha. – responde o pai.
- Pessoas, papai?
- Sim, filha. São pessoas diferentes de nós, por isso moram em um lugar tão diferente. Olha só, já estamos chegando – diz o pai, mudando de assunto.
- Eba! Estou com saudades da vovó. – diz a alegre Helen.

A estrada é deserta e monótona. O vento bate nos rostos quentes da família. O calor é grande. A estrada é sinuosa. A monotonia é apenas quebrada por um estranho cheiro de queimado.

- Está sentindo esse cheiro, anjo? – pergunta a mãe.
- Sim, meu bem. Estou sentindo. – estranha o pai – parece cheiro de queimado. É melhor eu parar para ver o que está acontecendo.
Quando o pai pisa no freio nada acontece.
- Não está freando. – diz ele assustado.
- Como não? – espanta-se a mãe – Tem uma curva logo ali na frente.

Vendo o desespero da mãe e o pai assustado, aliado aquele mau cheiro Helen não entende o que está acontecendo. A curva se aproxima, tal como o desespero dos pais dela. Ao tentar fazer a curva, o carro que está em alta velocidade, capota várias vezes para fora da estrada e para quando bate em uma grande pedra.

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